EU AB-SURDO
Eu, professor, que
já nem sei o que professar,
eu, amante estéril
da filosofia, leitor voraz,
que, por mais que
Kant, possivelmente desafino
na crítica da des-razão
pura, na acrítica
razão prática de
toda a metafísica do mundo,
incapaz de descrever
o olhar estupefato
da criança atônita
que perdeu pais e irmãos
soterrados pela lama
que desce dos corredores infectos
do congresso
nacional serra de teresópolis abaixo,
soterrando boneca de
pano sonhos e carrinhos de rolimã
encosta abaixo.
Eu, tradutor profissional,
incapaz de traduzir a alma
do texto escrito em
água furiosa, barrenta e leptospirose,
que me invade o
barraco enquanto durmo. O estilo
me sufoca, tão
impermeável à tradução como o asfalto,
o cimento, os
bueiros entupidos e estúpidos
de que as águas
agressivas da amorosidade do solo,
absorventes, se
divorciam. E buscam o divã perplexo
da psicóloga
deprimida na busca sôfrega
do diazepam de uma palavra... que não virá.
Eu, infectologista,
numa sociedade ela mesma infectada
pelo desamor, ironizando
meus compêndios e meus achaques.
Eu, homeopata das
incertezas diluídas com o pé
d’água ameaçador que
se veste de nuvem negra
e temporal medonho
triturado pelos fármacos
das multinacionais
das químicas sintéticas
a zombarem das
aguinhas e glóbulos que não dispenso
e então dispenso ao
paciente cuja paciência com o tratamento
há muito deslizou
feito barranco e barraco morro abaixo.
Eu, filósofo
clínico, filósofo cínico, filósofo cômico,
a desfilar
verborragias incautas contra ouvidos surdos,
absurdos, ávidos
pelas epistemologias que lhes prometem
o conhecer o ser do
conhecer; e saber do que o saber é feito;
onde se refugia do
argumento o defeito; do conceito
o inconcebível; da
lógica mais rigorosa o destempero
voraz de uma coceira
diabólica na sua ilogicidade.
Eu, eleitor
destrambelhado, que me deixei levar
pela avalanche da
demagogia mais deslavada,
e que votei na urna
funerária que conduzirá à casa
das centenas o
número de mortos e à casa
dos milhares os
desabrigados. E na urna eletrônica
que nos dará orgulho
entre as nações.
Eu, político
impublicável como o palavrão
aqui engolido,
administrador da coisa pública,
aliás, pública e
impudica, como o-cu-da-mãe-joana!
Eu, prefeitinho de
merda, que não tratei o esgoto
a céu aberto,
deputado que sonha com o senado
e vota sem pestanejar
o aumento
de seus proventos e
pras calendas gregas aborta
uns tico-ticos a
mais no agonizante salário
mínimo.
Eu, funcionário
público de médio escalão,
que tenho licenciado
obras nas encostas de morro,
firmes gelatinas de
sabor propina, uísque de natal
que me brindou o
dono da construtora, ele mesmo
senador travestido
de empresário, vampiro temerário,
golpista articulado
com setores da injustiça.
Eu, que me mordo de
culpa, porque o medicamento
já não alivia os
pruridos, sarnas e sarneis, coronéis
dos jornais e das
concessões de tevês autoconcedidas,
vermelhidão
pruriginosa a sangrar à exaustão
a verba
publicitária, a contorcer a verba orçamentária
desviada pras contas
suíças dos suínos. E meu
eleitorado, os
sobreviventes da tragédia, limpando
o rosto sujo e as
escoriações, dizem, entre soluço
e lágrimas, que,
graças a deus, deus me levou tudo,
mas me deixou forças
pra recomeçar.
Eu, autoridade
recém-empossada, ministro ou secretário
de estado, agora com
foro privilegiado, lanço a culpa
no meu antecessor
(se de outro partido for) e digo
que devemos rezar
para que a chuva dê uma trégua.
Depois, já em
palácio, entre correligionários e puxa-sacos,
sirvo o Scotch whisky que nos vai lavar a égua. Mesmo com
a vaca indo pro brejo!
Eu, que num sábado
de manhã e tarde, desejoso de mandar
que se met-a-física no cu da mãe dessa cambada,
acabo
ficando comportado e
lendo e comentando e discutindo
o valor da
axiologia, o saber superior da epistemologia,
o diabo da
dialética, o fenomenal da fenomenologia,
o vazio existencial
dos existencialistas, alguns deles
suicidas como os que
escalaram o morro em niterói
e lá plantaram seus
barracos na terra podre do chorume,
com o beneplácito
explícito dos burocratas do departamento
de meio-ambiente da
secretaria de obras desmoronáveis
do município
onde-o-judas-perdeu-as-botas.
Eu, que mesmo só com duas letras, estou no meio de dEUs
e não o compreendo.
Não no formato publicitário
das instituições
religiosas. Nem todas as teologias
do mundo e seus
alfarrábios rabugentos e empoeirados
pelos séculos dos
séculos me explicam tim-tim-por-tim-tim
o porquê da palidez
daqueles olhinhos assustados
pela perda da
família, mastigando palavras anestesiadas
pela dor e pela
impertinência da pergunta do repórter
da tevê, no seu
programa calhorda de imprensa marrom
como a lama, que lhe
lambe as botas fornecidas
pelos patrocinadores
da emissora – a única que entra
em cadeia – mas,
logo, logo, a liminar de um luminar
e o habeas corpus de um corpulento juiz
relaxam
a prisão.
Eu, que tenho sido
chamado de ego, que tenho sido
escorraçado pelas
psicologias, que tenho frequentado
egolatrias,
egoísmos, egocentrismos, eu, esse poço
de vaidades, esse
emaranhado de crenças familiares,
culturais,
filosófico-religiosas, eu, que num sábado
manhã e tarde, busco
refúgio e consolo
e acolhimento nos
textos eruditos de um filósofo,
mesmo que de
botequim, que me venha explicar,
ou complicar, as
vetustas perguntinhas: quem
sou eu, de onde vim,
pra onde vou e, afinal,
que diabo estou
fazendo aqui, no meio desse texto,
que não me alisto
como voluntário na solidariedade
televisiva, com
patrocínio da indústria de tratores,
pás mecânicas e
vacinas? Eu, meu caro, minha cara,
eu, para sempre
surdo. Eu ab-surdo! surdo! surdos!
"E no entanto é preciso cantar. Mais que nunca é preciso cantar.
É preciso cantar e alegrar a cidade". (Vinicius de Moraes).
"E no entanto é preciso cantar. Mais que nunca é preciso cantar.
É preciso cantar e alegrar a cidade". (Vinicius de Moraes).
***********************
MI AB-SURDA
Mi, profesoro, kiu
jam ne scias tion, kion profesi,
mi, senfrukta amanto
de filozofio, manĝegema leganto,
kiu ju pli Kant,
tutcerte despli min misagordas
en la kritiko de la
misracio pura, en la senkritika
racio praktika de ĉia
metafiziko de la mondo,
nekapabla priskribi
la konsternatan rigardon
de la surprizita
infano, kiu perdis gepatrojn kaj gefratojn
subterigitaj de la
koto, kiu forfluas de la koridoroj infektaj
de la nacia kongreso
monton de Terezopolo malsupren,
subterigante ŝtofopupon
revojn kaj lud-aŭteton je rullagro
deklive suben.
Mi, profesia
tradukisto, nekapabla traduki la animon
de la teksto verkita
de furioza akvo kotoplena leptospirozo,
kiu min invadas la
domaĉon dum mi dormas. La stilo
min sufokas, tiom
malpermeabla al la traduko, kiom la asfalto,
la cemento, la
kloakfaŭko obstrukciita kaj krudaĉa
de kiu la agresemaj
akvoj de la sojla amemo,
sorbeme, sin divorcis.
Kaj nun ili volas la perpleksan divanon
de la psikologino
deprimita dum sufera serĉo
de la diazepamo* de iu vorto... kiu ne venos.
Mi, infektologo, en
socio infektata ĝi mem de malamo,
ironiante miajn kompediojn
kaj malsanetojn.
Mi, homeopato de la malcertecoj
diluitaj de la minacanta diluvo
vestita de nigra
nubo kaj terura tempesto pistita de farmakoj
de plurnaciaj
entreprenoj kaj sintezaj ĥemiaĵoj
mokantaj pri akvetoj
kaj globetoj, kiujn mi ne preterlasas
sed do liberigas al
paciento, kies pacienco pri la tratamento
delonge glitis, kia
krutaĵo kaj domaĉo monte suben.
Mi, klinika filozofo,
cinika filozofo, komedia filozofo,
montrante
malprudentajn multvortemegojn kontraŭ surduloj,
absurdaj, avidaj je epistemologioj,
kiuj lin promesu
koni la esencon de
la kono; kaj scii el kiu konsistas la scio;
kie sin kaŝas de argumento
la difekto; de koncepto
la malkocepteblo; de
la logiko plej rigora la subita kaprico
vorema de diabla
juko kaj ĝia mallogikeco.
Mi, freneza
balotanto, kiu min lasis konduki de la lavango
de la demagogio plej
mallavita
kaj voĉdonis per la funebra
urno, kiu kondukos al centoj
la nombron de
mortintoj, al miloj tiun de senloĝejuloj.
Kaj per la elektronika
urno, kiu nin plenigos de orgojlo
inter la nacioj.
Mi, nepublikigebla
politikisto, kia la fivorto
ĉi tie englutita, mastrumanto
de la publika afero,
plibone, publika
kaj seks-hontema, kia anuso-de-panjo-johanino**!
Mi, urbestreto de
merdo, kiu ne zorgis pri la subĉiela kloako,
deputito, kiu sonĝas
pri la senatejo,
kaj senhezite voĉdonas
la plialtigon de siaj rentoj
sed prokastine
abortigas pliajn groŝojn
favore al la agoniante
minimuma salajro.
Mi, publika
funkciulo de mezgrada rango,
kiu licenciadas vorkojn
sur deklivoj de montetoj,
firmaj gelatenoj gustantaj
trink-monon, viskio kristnaska,
kiun min donacis la
posedanto de konstrua entrepreno, li mem
senatano travestita
de entreprenisto, kuraĝega vampiro,
puĉisto koluziita
kun sektoroj de maljustico.
Mi, kiu min mordas
pro kulpo, ĉar la medikamento
ne plu mildigas la
jukojn, akarozojn kaj sarnejojn,*** koloneloj
de gazetaro kaj de
koncesioj de televidkanaloj memkoncesiitaj,
haŭt-ruĝego jukema ĝislima
sangado
de la publiciaj
mon-sumoj kaj tordigoj de la buĝetaj mon-sumoj
misvojitaj al la
svisaj kontoj de fuŝuloj. Kaj mia
voĉdonantaro, la travivantoj
de la tragedio, lavante
la malpuran vangon
kaj kontuzojn, diras ke, meze al singulto
kaj larmoj, dank’al
dio, dio min forigis el ĉio,
sed lasis al mi fortojn
por rekomenci.
Mi, aŭtoritatulo ĵus-enpostenigita,
ministro aŭ sekretario
de ŝtato, nun kun
privilegia tribunalinstanco, kulpigas
mian antaŭulon (se
de alia partio) kaj diras,
ke ni devas preĝi
por ke la pluvo milit-paŭzu.
Poste, mi, jam en palaco,
inter fi-samideanoj kaj flataĉuloj,
servadas la Skotan viskion, kiu nin lavos la ĉevalinon.**** Eĉ se
la bovino iros al la marĉo!*****
Mi, kiu sabate
matene kaj vespere, dezirante ordoni,
ke oni met-a-fiziku en la patrinan pug-truon de
tiu fiaĉularo, ĵus
iĝis bonkonduta kaj
leganta kaj komentanta kaj diskutanta
la valoron de
aksiologio, la superan saĝon de epistemologio,
la diablon de
dialetiko, la fenomenan fenomenologion,
la ekzistan sencelo
de ekzististadismuloj, kelkaj el kiuj
memmortigistoj, kiaj
la grimpantoj de iu monto en Niterojo,
kiuj tie plantadis
siajn domaĉojn sur la putrefakta sterk-tero,
kun la eksplicita
konsento de burokratoj de la departemento
de medi-protektado
de la sekretario de vorkoj ruinigeblaj
de la komunumo kie-Ĵudaso-perdis-la-botojn.******
Mi (io), kiu eĉ nur
per du literoj, staras meze de dIOj
sed ne ŝ/lin
komprenas. Ne laŭ la publicia formato
de religiaj
institucioj. Eĉ ne ĉiuj teologioj
en la mondo kaj
malnovaj libraĉoj grumblemaj kaj polvo-kovritaj
pro la jarcentoj de
jarcentoj min ekspliku tintin’-post-tintine
la kialon de la paleco
de tiuj konfuzitaj infanokuletoj
pro la perdo de la
familio, maĉante anesteziitajn vortojn
de la doloro kaj impertinenco
de raportistaj demandoj
de TV, dum kanajla
programo de bruna figazetaro,
kia la koto, kiu lin
lekas la botojn donacitaj
de sponsoroj de la
TV-kanalo – la sola, kiu katene eniras
en reton – sed, tuj,
tuj, la limino-dokumento de luminulo
kaj la habeas-korpuso de korpulenta juĝisto nuligas
la areston.
Mi, kiu estadis
nomumita kiel egoon, kiu estadis
forigita de
psicologioj, kiu frekventadis
egolatriojn, egoismojn,
egocentrismojn, mi, tiu puto
de vantecoj, tiu embarasego
de familiaj,
kulturaj, filozofiaj-religiaj
kredoj, mi, kiu sabate
matene kaj vespere, serĉas
rifuĝon kaj konsolon
kaj akcepton en la erudiciaj
tekstoj de filozofo,
eĉ se de drinkejo, kiu
min venu ekspliki
aŭ kompliki la
antikvajn demandetojn: kiu
estas mi, el kie mi
venis, kien mi iros kaj, finfine,
kion diable mi faras
ĉi tie, meze al tiu teksto,
ke mi ne aliĝu kiel
volontulo de la televida
solidareco sponsorata
de la industrio de fosaj veturiloj,
meĥanikaj ŝoveliloj
kaj vacinoj? Mi, karulo, karulino,
mi, por ĉiame surda.
Mi ab-surda! surda! surdaj!
"Tamen oni bezonas ja kanti./ Pli ol neniam bezonas kanti./
Bezonas kante ĝojigi l' urbon". (Vinicius de Moraes, brazila komponisto).
"Tamen oni bezonas ja kanti./ Pli ol neniam bezonas kanti./
Bezonas kante ĝojigi l' urbon". (Vinicius de Moraes, brazila komponisto).
Notetoj:
* Farmako de la familio de benzodiazepinikoj, heterocíkliko, kristalina pulvoro uzata kiel ansiolitiko, antikonvulsiviga, moskola rilaksiga kaj kvietiga medikamento.
** Loko kie ajna persono miksas, malordigo.
*** Brazila senatano, eks-prezidento de Respubliko, tutpova interlanda 'kolonelo'.
**** Esprimo uzata kiam iu havas grandan venkon, avantagxon kaj profito.
***** Esprimo signifanta, ke io fiaskis, io ne planata okazis.
****** Esprimo uzata por indiki distaj, foraj lokoj.